Praça da Matriz - Tatuí
Nas tardes, a passarada canta em revoada, acoberta-se entre o balanço das folhas nas árvores seculares da Praça da Matriz. O jardim é protagonista deste outono que mais parece verão. O ar tépido deixa a pele fresca. Noites sem agasalho. O futuro aventureiro encontra pausa entre um café com espuma e o pão de queijo quentinho.
Em conforto na existência é possível este trabalho de enxergar, descobrir as raízes, buscar nas conversas o argumento para crescer a escrita. Aí esta a graça do interior, o passa-passa de pessoas pelo café, o descanso do olhar no verde frondoso de sombra e preguiça, o vislumbre de um tempo que chega buscando na calma a matéria prima das coisas feitas com vagar e concentração.
Aqui o alto-falante dos enervantes carros, a corrida do fim do dia passa rente e raspa arranhando humores, mas não nos toma completamente. O comércio baixa as portas de aço.
Ainda existe um tempo para jogar conversa fora, para pensar a vida limpa.
Olhando a praça, eu olho o mundo, tento entender tudo à distância, construindo nas superposições do tempo a imagem em camadas de um código que aprendi e que me vale rumo à fora, como nos romances de Agatha Christie, na lógica de miss Marple de que, em todos os lugares, os tipos se repetem.
Fora de hora folheio o jornal do dia. As histórias mínimas que correm entre as mesas redondas do café assumem variações como se fosse música. Sempre é dia de estreia, sempre tem novidades. Pequeno grupo de músicos agenda ensaio. Palavras cruzadas são disputadas e recebem assinatura. O café é canção de todo santo dia. Homens com a gravata frouxa depois do expediente. Tudo se sabe, a vida dos vivos e dos mortos. Alguns fazem negócios. O casal namora, e na espera trocam beijos, muitos beijos.
Minha travessia por aqui é solitária. Às vezes, encontro pessoas que não vejo há tempos. Tem dias que procuro assunto, tem dias que busco sossego para escrever olhando a rua. Notas musicais esparsas enchem o ambiente, é um fato. Um músico afina seu instrumento. A larga entrada do café aberta ao entardecer.
O verde é renda que balança no alto das copas. A cidade se desdobra em várias, carrega muitos sentidos, penso nas frases que espero que venham. Distraída, observo um homem apressado, alto, de presença forte, que atravessa a rua e cruza a praça. O cachorro vadio e esperto.
Em par os guardas municipais. Jovens iguais, de boné, jeans e camiseta larga.
Observo o Fran com a conversa macia na ponta da língua, assim como a sua escrita que remexe os “causos” da cidade e os estica em crônicas.
Posso, se quiser, reduzir a cidade em fragmentos belos e precisos. Revejo histórias de um passado distante. Os filmes épicos, os filmes em série, os romances açucarados, os gibis da revistaria São José. Uma pequena cidade com sabor de sorvete de coco e balas puxa-puxa de café. As noites silenciosas, o trote dos cavalos nas ruas de paralelepípedo e terra. O clima misterioso que se desfez com o tempo. Infância em preto e branco, agora sépia.
O italiano de tipo sanguíneo veste a camiseta branca sob a camisa de mangas longas, listrada de azul e branco. Tantos anos de Brasil, o sotaque ainda é carregado. Mantém o costume de reunir-se aos amigos na praça e no café, como na velha Itália. Fala dos vinhos fermentados com o próprio açúcar da uva, o vinho tinto seco, estala a língua na boca.
Fico por aqui sem querer aborrecer ninguém, leio o jornal do dia. Escrevo.
Antes aqui as ruas eram de poeira; depois, o calçamento com lajotas rejuntadas com piche preto, fumegante, de cheiro forte. Brincava de estourar as bolhas com os pés pequenos, calçados com botas ortopédicas. Escrevo para rever com prazer este trajeto de afeto. Agora, asfalto.
O verde é renda que balança no alto das copas. A cidade se desdobra em muitas. A simplicidade tosca das feiras dos bairros, as bancas do Mercado Municipal, o cheiro de fumo de corda, as frituras dos bolinhos de frango feitos de modo caipira, com a farinha de milho escaldada.
Tatuí carrega em si muitos sentidos, para o bem ou para o mal, o povo é exagerado, é dado a excessos. Povo orgulhoso da terra; por aqui, as notícias correm, uns falam dos outros. É assim que o interior se expressa. As pessoas se notam, se pertencem e seguem em destino comum com trajetos entrelaçados. Fecho os olhos e ouço um burburinho de erres arrastados, o sotaque que vem de longe, das origens rurais, do caminho das tropas que, muito mais que antigamente, passavam por estas paragens.
Deste jeito, escrevendo, penso da minha responsabilidade na formação de um público mais reflexivo. Como levar a alma de nossa história às pessoas falando de nossa gente de um jeito gostoso de ler?
Perdida nesses pensamentos, ao virar a esquina da rua 11 de Agosto com a rua Cônego Demétrio, encontro-me com o artista Celso Módena, tensão contínua, explosiva em criação. Interessado pelo fazer na prolífica bisbilhotice de transformar o ócio em ofício. Construiu sua vida assim, sem disfarçar suas verdadeiras intenções. Deixou de ser bancário para ser artista. Começou pela fotografia, autodidata. Cobriu festas, casamentos, retratou um tempo da cidade. Fervorosamente crente em sua arte, abrigou anseios de amplidão, aventurou-se pela música, e assim foi indo, desdobrando-se, decidindo seu destino. Só ele ouve o que não mais ouvimos. Só ele sabe do cheiro de morte dos animais assados, comidos nos churrascos.
Conversando, dá-lhe um branco, estes espaços vazios, as pausas silenciosas que socorrem os mais velhos quando querem expressar tanta memória guardada.
Os olhos vibram, azuis e jovens, a curiosidade o alimenta. Tem vocação de menino, sempre descobrindo, aprendendo, se assustando com o que já foi, o garoto cruel que, com estilingue e porrete, matava passarinhos. Agora se recusa a pactuar com a matança agressiva dos animais. Até goiaba come com cuidado para não dividir ao meio os bichinhos que ali fazem moradas.
O semblante se entristece quando fala da sina do artista, sempre com pouco dinheiro, ofício sempre sem paga. Quanto custa a sua arte? Quanto custa a entrega total, o êxtase quando o ouvimos tocar? Celso só tem um ouvido bom, um incrível ouvido estéreo. Bruxo de sua flauta encantada. E só tem um olho bom, e é com ele e sua câmera que vigia as abelhas, as formigas, as jabuticabas espalhadas pelo chão do seu quintal. A vida em fá maior, rica em maravilhas. Seu mundo de reinações, sua obra fragmentada em excessos de distrações. O sorriso se abre e conta sua mais recente glória: domínio, ainda que não totalmente, como ele faz questão de dizer, do computador. A internet o assusta pelas infinitas viagens, tem medo de se perder pelo mundo virtual agora que o sono quase que não vem, agora que a vida lhe abençoa para fazer o que quiser, desde que não se machuque, desde que não perca a paz.
Feliz achado, saí emocionada com este encontro casual. Pessoas de impulso artístico me tocam profundamente. Estou viva, vivíssima, com tudo a ser feito, apaziguada pela tangência que a figura de Celso acorda em mim. Com toda a sua inconstância, com todo o descaso com que é tratada a arte e os artistas neste país, Celso permanece impávido, desperto. Ele é feliz e não inveja nem os reis da terra.
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