Tatuí Cidade Ternura

-Que cidade é esta que chamamos carinhosamente de ternura? A ressonância real da cidade de Tatuí através da viva voz de seu povo.Um espaço de influências e formação,um centro de referências e valores.Um arquivo disponível à pesquisa e estudo

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Professora Leila Sallum Menezes da Silva


Professora Leila Salum Menezes da Silva, dona Leila é tão minha querida professora que não me acostumo em chamá-la de doutora.

A casa sempre igual, os sofás de couro marrom dispostos um a frente do outro, a pequena mesa de apoio coberta com toalha de crochê. A cadeira de balanço. O barulho da rua 11 de agosto fica distante tal é o ânimo da conversa. Os livros arrumados na estante de parede inteira. As fotos da família em porta retratos contam histórias, guardam sorrisos. O vezo estilístico da escritora pontuando a conversa em humor e drama. Ela estende-se além dos reveses sofridos, ama a literatura, ostenta o que lhe faz bem, os detalhes aqui não são pequenos, comenta a beleza dos netos, o jeito de cada filho, ri fazendo brilhar seus olhos de menina. Sêo Gilton sempre por ali lhe dando atenção, um casal bonito.

Enquanto a escrita e a leitura são assuntos mortos neste país na casa de Leila falamos de livros. Folheio um belíssimo livro de arte, em primorosa edição com fotos e texto dos monumentos do Distrito Federal, presente do Ministro Celso de Mello que carinhosamente ela chama de Celsinho. E conta que quando Celsinho tinha de 10 para 11 anos e era seu aluno no Instituto de Educação Barão de Suruí ela, no meio de uma aula sobre adjetivos restritivos e explicativos pede um exemplo aos alunos de adjetivo explicativo e lembra, são aqueles que tem a qualidade essencial, que não acrescenta nada, por exemplo leite branco. Celsinho de pronto levanta a mão e diz: homem mortal. Ao contar este fato ela revela o orgulho de ter tido um aluno tão brilhante entre seus muitos queridos alunos.

Como está sendo fazer pós graduação de processo civil aos 76 anos de idade?

Eu me lembro que Sêo Borges dizia: “Catão, aprendeu grego aos 80 anos”.

Está sendo um aprimoramento do meu curso de graduação na FKB com o grande professor Soares Hungria. Adoro estudar, sou muito Jamul Salum, meu irmão também um estudioso.

Quando eu me aposentei eu fiquei meio vendida e meu filho Cassiano me entusiasmou a fazer faculdade de Direito. Um dia encontrei com Dona Zeneide que havia me proposto o vestibular para Direito. Estudamos juntas e passei em primeiro lugar entre mais de 1000 candidatos.

Como foi voltar aos estudos?

Minha turma era privilegiada, existia gente madura e profissionais com interesse em crescer.

O que é ser professora? É apenas um ofício ou é uma identidade?

Não é nem ofício, nem identidade é uma benção.

Tenho ex-alunos que me cumprimentam pelas ruas e isso é muito gratificante.

Certa vez, o juiz Dr. Marcelo, do juizado de menores, em uma audiência notou que todos me cumprimentaram, quando passavam pela porta. Ele comentou sobre esta minha popularidade, que eu credito aos anos em que lecionei língua portuguesa no Instituto de Educação Barão de Suruí e outras escolas. Fui professora não só do ministro José Celso de Mello, mas de 90% dos advogados do fórum. Dentre eles, o doutor Ivo Mendes, doutor Benê, e doutor Lincoln.

O interessante é que também fui professora de criminosos, corruptos, todos frequentavam a mesma sala de aula.

Se eu nascesse de novo, eu gostaria de ser professora. A palavra mestra é muito significativa. Jesus era um mestre.

Nasci em um berço que prezava o estudo. Minha mãe contratava professores de violino e francês para a formação de meus irmãos. Daí, me veio o gosto pelo estudo.

Se fosse possível escolher, ser um personagem de literatura. Qual você escolheria?

De cinema. Eu me identifico com a Ingrid Bergman, principalmente no filme Casablanca. Em literatura, seria Laura de Petrarca, ou Fermina Daza, a heroína do romance “O Amor nos Tempos de Cólera”, de Gabriel Garcia Marques.

Estudiosa da obra do escritor tatuiano Paulo Setúbal, o que você diz de seu estilo literário?

Paulo Setúbal é genial. Tanto nos romances históricos, como na poesia e no Confiteor, onde ele se desnuda ante a eternidade.

Como trazer Paulo Setúbal para os dias deste agora, sem ser maçante?

É difícil. Em época de internet é muito raro alguém descer os livros da estante para fazer pesquisa. A criançada está na mídia eletrônica e nem se importa mais.

Será avanço ou retrocesso? Será que a leitura toma muito tempo e a mídia em torno é mais imediata?

Vai muito da pessoa. O gosto pela leitura é quase que genético. Hoje, as pessoas querem resumo. Tudo pronto.

A saída?

Comprem livros, deem livros, comentem livros.

E o mundo de hoje?

Tem preço e não tem valor. As pessoas e as coisas são extremamente descartáveis. Contudo, eu me surpreendo com o mundo. Acho o mundo maravilhoso.

Não vamos jogar no lixo a tecnologia, sou do tempo dos rádios de pilha e elétrico. Gosto dos tempos de antanho, mas gostaria de ter nascido mais tarde, pois tem muito a desfrutar. Eu me emociono muito com as coisas.

Tatuí, ternura

Nós somos um povo acolhedor. Todos que aqui vem se sentem familiarizados e bem. Ainda há um pouco de esperança. A Praça da Matriz nos fins de semana é uma maravilha.

A nossa primeira dama é extraordinária, muito atuante. Nosso prefeito transformou a cidade.

O importante são as pessoas e não as coisas.


Para minha querida mestra,

Enquanto as pessoas se assustam e se acomodam com a passagem do tempo Leila Sallum floresce estudiosa, estabelecendo novos padrões de busca pelo conhecimento, novas marcas para o tempo acadêmico que sedimentam nosso respeito ao estudo agregando respeito e valor à língua portuguesa. Nesta Tatuí ternura, Leila ocupa um lugar imenso, minha mestra. Estar com ela tem a força de um acontecimento, um duo em que o cotidiano é tratado com decência, amizade e cultura.

Cristina Siqueira

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Tatuí Ternura

Celso Módena
Musicista-Fotografo




Praça da Matriz - Tatuí

Nas tardes, a passarada canta em revoada, acoberta-se entre o balanço das folhas nas árvores seculares da Praça da Matriz. O jardim é protagonista deste outono que mais parece verão. O ar tépido deixa a pele fresca. Noites sem agasalho. O futuro aventureiro encontra pausa entre um café com espuma e o pão de queijo quentinho.
Em conforto na existência é possível este trabalho de enxergar, descobrir as raízes, buscar nas conversas o argumento para crescer a escrita. Aí esta a graça do interior, o passa-passa de pessoas pelo café, o descanso do olhar no verde frondoso de sombra e preguiça, o vislumbre de um tempo que chega buscando na calma a matéria prima das coisas feitas com vagar e concentração.
Aqui o alto-falante dos enervantes carros, a corrida do fim do dia passa rente e raspa arranhando humores, mas não nos toma completamente. O comércio baixa as portas de aço.
Ainda existe um tempo para jogar conversa fora, para pensar a vida limpa.
Olhando a praça, eu olho o mundo, tento entender tudo à distância, construindo nas superposições do tempo a imagem em camadas de um código que aprendi e que me vale rumo à fora, como nos romances de Agatha Christie, na lógica de miss Marple de que, em todos os lugares, os tipos se repetem.
Fora de hora folheio o jornal do dia. As histórias mínimas que correm entre as mesas redondas do café assumem variações como se fosse música. Sempre é dia de estreia, sempre tem novidades. Pequeno grupo de músicos agenda ensaio. Palavras cruzadas são disputadas e recebem assinatura. O café é canção de todo santo dia. Homens com a gravata frouxa depois do expediente. Tudo se sabe, a vida dos vivos e dos mortos. Alguns fazem negócios. O casal namora, e na espera trocam beijos, muitos beijos.
Minha travessia por aqui é solitária. Às vezes, encontro pessoas que não vejo há tempos. Tem dias que procuro assunto, tem dias que busco sossego para escrever olhando a rua. Notas musicais esparsas enchem o ambiente, é um fato. Um músico afina seu instrumento. A larga entrada do café aberta ao entardecer.
O verde é renda que balança no alto das copas. A cidade se desdobra em várias, carrega muitos sentidos, penso nas frases que espero que venham. Distraída, observo um homem apressado, alto, de presença forte, que atravessa a rua e cruza a praça. O cachorro vadio e esperto.
Em par os guardas municipais. Jovens iguais, de boné, jeans e camiseta larga.
Observo o Fran com a conversa macia na ponta da língua, assim como a sua escrita que remexe os “causos” da cidade e os estica em crônicas.
Posso, se quiser, reduzir a cidade em fragmentos belos e precisos. Revejo histórias de um passado distante. Os filmes épicos, os filmes em série, os romances açucarados, os gibis da revistaria São José. Uma pequena cidade com sabor de sorvete de coco e balas puxa-puxa de café. As noites silenciosas, o trote dos cavalos nas ruas de paralelepípedo e terra. O clima misterioso que se desfez com o tempo. Infância em preto e branco, agora sépia.
O italiano de tipo sanguíneo veste a camiseta branca sob a camisa de mangas longas, listrada de azul e branco. Tantos anos de Brasil, o sotaque ainda é carregado. Mantém o costume de reunir-se aos amigos na praça e no café, como na velha Itália. Fala dos vinhos fermentados com o próprio açúcar da uva, o vinho tinto seco, estala a língua na boca.
Fico por aqui sem querer aborrecer ninguém, leio o jornal do dia. Escrevo.
Antes aqui as ruas eram de poeira; depois, o calçamento com lajotas rejuntadas com piche preto, fumegante, de cheiro forte. Brincava de estourar as bolhas com os pés pequenos, calçados com botas ortopédicas. Escrevo para rever com prazer este trajeto de afeto. Agora, asfalto.
O verde é renda que balança no alto das copas. A cidade se desdobra em muitas. A simplicidade tosca das feiras dos bairros, as bancas do Mercado Municipal, o cheiro de fumo de corda, as frituras dos bolinhos de frango feitos de modo caipira, com a farinha de milho escaldada.
Tatuí carrega em si muitos sentidos, para o bem ou para o mal, o povo é exagerado, é dado a excessos. Povo orgulhoso da terra; por aqui, as notícias correm, uns falam dos outros. É assim que o interior se expressa. As pessoas se notam, se pertencem e seguem em destino comum com trajetos entrelaçados. Fecho os olhos e ouço um burburinho de erres arrastados, o sotaque que vem de longe, das origens rurais, do caminho das tropas que, muito mais que antigamente, passavam por estas paragens.
Deste jeito, escrevendo, penso da minha responsabilidade na formação de um público mais reflexivo. Como levar a alma de nossa história às pessoas falando de nossa gente de um jeito gostoso de ler?
Perdida nesses pensamentos, ao virar a esquina da rua 11 de Agosto com a rua Cônego Demétrio, encontro-me com o artista
Celso Módena, tensão contínua, explosiva em criação. Interessado pelo fazer na prolífica bisbilhotice de transformar o ócio em ofício. Construiu sua vida assim, sem disfarçar suas verdadeiras intenções. Deixou de ser bancário para ser artista. Começou pela fotografia, autodidata. Cobriu festas, casamentos, retratou um tempo da cidade. Fervorosamente crente em sua arte, abrigou anseios de amplidão, aventurou-se pela música, e assim foi indo, desdobrando-se, decidindo seu destino. Só ele ouve o que não mais ouvimos. Só ele sabe do cheiro de morte dos animais assados, comidos nos churrascos.
Conversando, dá-lhe um branco, estes espaços vazios, as pausas silenciosas que socorrem os mais velhos quando querem expressar tanta memória guardada.
Os olhos vibram, azuis e jovens, a curiosidade o alimenta. Tem vocação de menino, sempre descobrindo, aprendendo, se assustando com o que já foi, o garoto cruel que, com estilingue e porrete, matava passarinhos. Agora se recusa a pactuar com a matança agressiva dos animais. Até goiaba come com cuidado para não dividir ao meio os bichinhos que ali fazem moradas.
O semblante se entristece quando fala da sina do artista, sempre com pouco dinheiro, ofício sempre sem paga. Quanto custa a sua arte? Quanto custa a entrega total, o êxtase quando o ouvimos tocar? Celso só tem um ouvido bom, um incrível ouvido estéreo. Bruxo de sua flauta encantada. E só tem um olho bom, e é com ele e sua câmera que vigia as abelhas, as formigas, as jabuticabas espalhadas pelo chão do seu quintal. A vida em fá maior, rica em maravilhas. Seu mundo de reinações, sua obra fragmentada em excessos de distrações. O sorriso se abre e conta sua mais recente glória: domínio, ainda que não totalmente, como ele faz questão de dizer, do computador. A internet o assusta pelas infinitas viagens, tem medo de se perder pelo mundo virtual agora que o sono quase que não vem, agora que a vida lhe abençoa para fazer o que quiser, desde que não se machuque, desde que não perca a paz.
Feliz achado, saí emocionada com este encontro casual. Pessoas de impulso artístico me tocam profundamente. Estou viva, vivíssima, com tudo a ser feito, apaziguada pela tangência que a figura de Celso acorda em mim. Com toda a sua inconstância, com todo o descaso com que é tratada a arte e os artistas neste país, Celso permanece impávido, desperto. Ele é feliz e não inveja nem os reis da terra.